Referências [References]
Projeto para o arte_passagem | abertura: 28 de setembro de 2018
[Upcoming project for arte_passagem | opening: September, 28th 2018
Referências [References]
Projeto para o arte_passagem | abertura: 28 de setembro de 2018
[Upcoming project for arte_passagem | opening: September, 28th 2018
Referências [References]
Projeto para o arte_passagem | abertura: 28 de setembro de 2018
[Upcoming project for arte_passagem | opening: September, 28th 2018
"Diante do mistério. Homem de pedra, compreende-me" Breton
O Tempo a Fumar a Pintura
A sombra e a fumaça: Artur Ferreira e Matheus Chiaratti
A linha que separa é a mesma que une: fronteira ou ligação entre dois pontos, cabe a ela promover o encontro, estimular a interação e criar espaços de partilha. Não por acaso, é a linha que une o trabalho de Artur Ferreira e Matheus Chiaratti: O Andor, trabalho que sela esse encontro, revisita um dos mais conhecidos e remotos mitos de origem do desenho ao mesmo tempo em que firma os termos dessa colaboração. No Livro X da Institutio Oratoria, Quintiliano sugere que o contorno das sombras que os corpos projetam à luz do sol consiste na mais primitiva forma de desenho, enquanto Plínio o Velho, no Livro 35 da Naturalis Historia, escreve que Cora, filha de Butades, oleiro de Sicião, traçou na parede o contorno da sombra do rosto de um rapaz por quem estava apaixonada, a fim de cristalizar sua imagem e atenuar sua saudade. Em Andor, Artur contorna sobre tecido a sombra de Matheus e vice-versa, costurando em seguida essas silhuetas sobre outro tecido ligeiramente mais escuro. A insistência na linha – traçada e costurada – não mais como marca gráfica, mas como gesto poético de negação da retidão geométrica e de reconhecimento do outro, aponta para um movimento de sabotagem do racionalismo moderno, fundado no pretensioso encontro da exatidão e da objetividade. Ao contrário, a obra de Ferreira e de Chiaratti é regida pela imprecisão e pela falha de uma linha sempre orgânica e sensual, não só porque é erótica, quando percorre o desejo e as forças da criação, mas também porque se baseia na relatividade dos sentidos.
O tempo a fumar a pintura, título da mostra, remete a um desenho do artista britânico William Hogarth realizado em 1764. Nele, o velho deus Cronos, com barba e imensas asas, sentado sobre fragmentos de estátuas antigas, fuma com um cachimbo uma imensa pintura, da qual nada se vê além de fumaça e moldura que a limita inutilmente. A obra, que é uma espécie de alegoria do tempo, capaz de tudo desintegrar, impossibilita a sombra, se recusa à materialidade dos corpos, mas serve como porta de entrada para algumas obras. De um lado, Feira do Cadouço, de Artur Ferreira, frutas de cera moldadas sobre limões, que evocam tanto o tempo agindo sobre as clássicas naturezas-mortas, que nos lembram da fugacidade da vida, quanto as antigas máscaras mortuárias de cera, que buscavam eternizar a fisionomia de um sujeito já morto. De outro, Beba Crush, de Matheus Chiaratti, parece reunir, como relíquias, as flechas que atingiram o corpo de São Sebastião, ou aquelas guardadas no arsenal de Cupido. De maneira análoga à fumaça, as obras falam, cada uma a seu modo, sobre presenças e ausências, tanto pelo molde que preserva, de maneira frágil, uma existência desaparecida, quanto pela relíquia que nos conecta com um corpo já perdido.
Esse jogo de presenças e ausências reencena, nos trabalhos apresentados na mostra, uma relação entre erótico e necrótico, vida e morte, desejo e luto, manifestada na pele de cera – modalidade de desenho matérico praticada por Ferreira – e na seta de barro – vetor de um desenho aéreo praticado por Chiaratti –, e atualizada em Bum!, outro trabalho feito em dupla. Nessa fotografia – que dialoga com a tradição ística italiana, desta vez a do corpo morto stecchito, presente desde o célebre Lamentação sobre o Cristo morto (1475–1478), de Andrea Mantegna, até o Cristo velado (1753), de Giuseppe Sanmartino –, a rasura, a anotação e a mancha surgem novamente como recurso de oposição à assepsia quase científica do véu que cobre o corpo imóvel. Sobre esse corpo repousam lenços escritos, que se combinam formando uma espécie de poema visual que tende à abstração. É aí que descobrimos um exercício de conciliação entre sombra e fumaça, substâncias potencialmente contrárias, que se formula nas perguntas: Como apreender o outro? Como acessar o outro? Como percorrer o outro? Talvez a resposta, sempre a escapar como fumaça, não venha senão através desenho.
São Paulo, julho de 2025
Renato Menezes é historiador da arte e curador da Pinacoteca de São Paulo
INFO
O Tempo a Fumar a Pintura - a duo show com Artur Ferreira
Abertura: 26 de julho de 2025
Até 9 de agosto de 2025
25M | Galeria Metrópole, Av. São Luís, 187, sala 25, São Paulo

©2024 by Matheus Chiaratti.